A esta altura, já está nítido que as manifestações contra o aumento das passagens de ônibus e metrô têm raízes muito mais profundas. Se, por um lado, expõem uma sensação de revolta generalizada, também é sintomático que essa revolta se expresse em uma demanda relacionada à mobilidade na cidade de São Paulo.
A privatização dos espaços, a desigualdade econômica e a violência institucional colocam barreiras indiscutíveis à circulação da população paulistana – e, em especial, da juventude. Por isso, é uma cruel ironia que ao tomar as ruas para protestar, seja justamente o “direito de ir e vir” a ser jogado contra eles. Como diz o professor Jorge Luiz Souto Maior:
“O Movimento Passe Livre tem o mérito, portanto, de nos forçar a colocar a questão do transporte público em pauta, para que todos tenham, de fato, o direito de ir e vir. Nesta linha da visualização social, é importante perceber que, mesmo considerando todas as dificuldades, facilmente verificáveis nas vias da cidade, a saída do transporte privado (cada um em seu carro, buscando caminhos alternativos), ainda é melhor – muito melhor – que o transporte público, o que nos força a reconhecer que o direito de ir e vir daqueles que, em virtude do desenvolvimento de um processo excludente advindo da desequilibrada divisão do trabalho e da especulação imobiliária, foram deslocados para periferias distantes e que dependem de transporte público tem sido ainda mais agredido: é fila no ponto; é ônibus que não para; é fila no trem; é trem que não chega; são ônibus e trens lotados, nos quais, durante as longas viagens, se intensifica a supressão da dignidade humana”.
Esse é um debate que precisa ser aprofundado. Seja com a melhoria dos serviços oferecidos – em que a Prefeitura vem atuando -, com uma auditoria rigorosa das concessionárias e permissionárias e com o retorno da ideia do subsídio ao transporte coletivo como política pública – distribuindo os custos entre usuários e não-usuários do sistema de ônibus, já que toda a cidade se beneficia.
O primeiro ponto é a transparência no cálculo da tarifa, para entendermos como o serviço pode ser tão caro tanto para a Prefeitura como para a população, mesmo sendo de baixa qualidade. É necessário controle social sobre os contratos com as empresas de ônibus. Nesse sentido, teve início o processo de licitação para a concessão das linhas de ônibus pelos próximos 10 anos. Precisamos exigir que todo o processo seja acompanhado por audiências públicas, com transparência e controle social.
Outra frente é aumentar subsídios e rever fontes de financiamento, com a taxação sobre o transporte individual com os recursos direcionados ao transporte público e ampliação progressiva de gratuidades, começando com beneficiários de programas sociais. Por fim, é também necessário melhorar a qualidade e ampliar o serviço, com controle rígido sobre a lotação e horários de funcionamento, ampliação de linhas 24 horas e aos finais de semana.
Essa discussão esbarra na ausência de mecanismos de participação população e de canais de reivindicação, discussão e decisão dos rumos das políticas públicas. Mais importante, para que tudo isso possa ser discutido precisamos de liberdade! A truculência com que a Polícia Militar atacou, na última quinta-feira, manifestantes, jornalistas e transeuntes e as detenções arbitrárias trazem à tona o desrepeito cotidiano aos direitos humanos e a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. É uma polícia que mata nas periferias, que atua com violência em reintegrações de posse, como no Pinheirinho. A acusação de formação de quadrilha imputada a manifestantes também não é novidade e é um desrespeito à liberdade de manifestação. Sendo assim, não dá para admitir a afirmação de que apenas na quinta-feira houve “excessos” da PM, quando há relatos anteriores apontando situações similares, ainda que em menor escala. Muito menos é aceitável uma comparação que coloque como simétricos os danos ao patrimônio causados por manifestantes e as agressões cometidas por policiais, que são agentes públicos e que utilizam um vasto arsenal.
O direito de ir e vir só será garantido de forma democrática quando repensarmos o modelo de mobilidade baseado no transporte individual e quando avançarmos na defesa da qualidade do transporte público.
O direito de liberdade de expressão e de manifestação só será garantido de forma republicana quando deixarmos de tratar movimentos sociais como caso de polícia e quando ampliarmos os canais de participação efetiva.
Na rua por uma outra cidade!