Por que transporte 24 horas?

Por Bárbara Lopes

Desde as eleições municipais de 2012, vimos propondo e debatendo a circulação 24 horas de ônibus em São Paulo. Durante a campanha eleitoral, a recepção à proposta era muito positiva. Não precisávamos argumentar sobre a importância da ampliação de horário. Os próprios usuários com quem conversávamos lembravam várias situações – em diversos casos, que eles mesmos vivenciavam – que justificavam a proposta. Uma amostra da força dessa demanda está na inclusão, pelo plano de metas da Prefeitura de São Paulo, de ônibus 24 horas. (Outra foi a campanha pelo Metrô 24 horas, que resultou em uma audiência pública, em que a companhia alegou que a proposta era inviável tecnicamente).

Ainda assim, um debate sempre apareceu ou ficou subjacente: se o foco do sistema de transportes deve ser o trabalhador, quem se beneficia do ônibus 24 horas? A primeira resposta para essa questão é o grande contingente de pessoas que trabalham à noite e de madrugada. São trabalhadores que fazem plantão em empresas de telemarketing e serviços de saúde, que estão no turno da noite de fábricas e galpões e, os mais lembrados, os que trabalham nos bares, restaurantes e casas noturnas de São Paulo. Como desdobramento disso, também podemos imaginar que um maior fluxo de pessoas à noite, por lazer, pode gerar mais empregos nesse setor.

Se essa resposta aparentemente resolve a questão, também esconde uma visão que merece ser discutida. Começando pelo fato de separar, como se fossem categorias distintas e sem intersecção, o trabalhador e o jovem que sai à noite. Em muitos casos, são as mesmas pessoas. Mas podemos considerar que não seja o caso da maioria: que trabalhadores trabalham e jovens que se divertem não precisam trabalhar. Assim, o transporte, como política pública, deveria atender aos primeiros e não aos segundos.

Esse é o ponto do qual discordo com mais veemência. O transporte, dentro de um conjunto de políticas, deve servir para combater esse abismo. É dar condições para que toda a população possa usufruir dos espaços culturais, do lazer, dos encontros com outras pessoas – e também da noite. O papel do Estado não pode ser simplesmente aliviar as condições de exploração, mas sim o de promover a dignidade e a cidadania, o que pressupõe o direito à cidade. Das lições a serem aprendidas com o Movimento Passe Livre, a principal é perceber o potencial revolucionário da mobilidade urbana.

O modelo de transporte público em São Paulo reflete essa visão que vê o trabalho como única atividade da população. Há hoje com dois tipos de contrato: as concessionárias, que atuam nas vias estruturais, fazendo o trajeto bairro-centro; e as permissionárias, que complementam o serviço fazendo trajetos dentro do bairro. Parece fazer sentido em uma cidade que tem mais ou menos o formato de uma cruz, mas só se não considerarmos a enorme dimensão territorial de cada região. O resultado é que, mesmo dentro do centro expandido, pode ser muito difícil chegar em um lugar relativamente perto. Ao mesmo tempo, não há condução à noite e, nos fins de semana, os ônibus se tornam raros.

Essa negação do direito ao lazer e à cultura é uma forma de manutenção da desigualdade social. Isso se torna mais evidente num momento em que a inclusão econômica e pelo consumo de uma parcela da população vai dando sinais de desgaste, que é uma das explicações para as manifestações de junho. Sabemos que pobreza não é apenas relacionada à renda, mas à privação de serviços públicos. Podemos pensar na exclusão de jovens negros e de periferia das universidades – principalmente das universidades públicas. Isso não vem só da baixa qualidade da escola, mas também da dificuldade de acesso a bens culturais.

Nesta quarta-feira, o prefeito de São Paulo sancionou a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2014, que prevê um projeto piloto de transporte 24 horas. Uma das ideias, segundo a notícia do UOL, é colocar ônibus fazendo o trajeto das linhas de Metrô de madrugada. É um bom começo, mas muito mais será necessário. O processo de criar as linhas, decidir o tipo de veículo e regras de funcionamento (os ônibus poderão parar fora do ponto? A duração do Bilhete Único poderia ser estendida?) depende de estudos técnicos, mas que devem ser conjugados com uma consulta sistemática à população. Assim, a cidade que não para pode começar a se mover em outra direção.

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